VOCÊ SABE POR QUE A ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA NO DIA 13 DE MAIO DE 1888 É CONSIDERADA INACABADA?

No decorrer século XIX, foram aprovadas várias leis que gradualmente afetaram a situação da população negra como: Lei Eusébio de Queiroz (1850), Lei do Ventre Livre (1871) e Lei dos Sexagenários (1885), é preciso ressaltar que estas leis só foram aprovadas a partir da intensa pressão dos movimentos sociais ligados a causa negra, associado, também, com as pressões internacionais que desde o começo do século XIX pressionavam intensamente o Brasil para pôr fim à escravatura. Porém, somente com o advento da Lei Áurea em 13 de maio de 1888 que a condição jurídica da população negra mudou completamente, quando se extinguiu definitivamente o direito de propriedade sobre seres humanos, ou seja, a humanidade chegou, mas apenas formalmente, uma vez que a destituição do regime escravocrata não foi acompanhada por medidas de auxílio ou assistência que garantissem aos recém libertos a subsistência, ao menos, no período de transição para o regime de trabalho livre.

Outro ponto que merece atenção é que a Lei Áurea – com seu módico texto normativo – não incumbiu ninguém, nem os ex-senhores, nem mesmo o próprio Estado, da tarefa de preparar os ex-cativos para o novo regime de trabalho. Não reservou nenhuma de suas poucas linhas para tratar do “dia seguinte” dos ex-escravizados; o que, quem sabe, os possibilitaria uma condição inicial minimamente “comum” aos demais grupos étnico-raciais. Com a Lei Áurea houve a derrubada, de boa parte, das barreiras formais que impediam os negros de competir com os brancos pelas posições sociais mais altas, sendo-lhes facultada a entrada na corrida, ocorre, entretanto, que quando os portões se abriram os negros perceberam que os brancos já se encontravam a milhares de quilômetros dali. Essa condição inicial desigual, produz efeitos constatáveis até os dias de hoje, principalmente, quando percebemos que para que os negros superem a desvantagem imposta por ela, é preciso que, a cada geração, percorram uma distância muito maior do que a percorrida pelos seus contemporâneos brancos (OSÓRIO, 2008).

Com a Proclamação da República em 1889, ocorre uma considerável mudança na estrutura política brasileira, principalmente com a introdução do regime federativo e do sistema de eleições diretas, há também alterações jurídicas, visto que o conceito de cidadania é estendido a todas as pessoas, inclusive a população negra que com a abolição se tornam cidadãos brasileiros. No entanto quando se trata da situação social da população negra, apesar de sua humanidade juridicamente reconhecida, não houveram mudanças expressivas, houve, pelo contrário, como lembra a professora, Eunice Prudente, um manifesto desprezo para com o homem negro e a mulher negra. O que fica bastante evidente, quando da leitura do Decreto n- 528, de 28 de junho de 1890, principalmente, seu artigo 1º: “E inteiramente livre a entrada, por portões da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho… excetuados os indígenas da Ásia e da África…”

Para Santos e Felipe (2019) Neste mesmo decreto, percebe-se que, se por um lado o governo brasileiro assumiu uma postura de abandono para com os recém libertos, por outro lado incentivou fortemente a imigração de europeus para o Brasil. Negava-se àqueles, o que se deu a estes. As propriedades que recebessem imigrantes ganhariam consideráveis quantias em dinheiro, mas, os recebendo ficavam obrigados a garantir suas subsistências pelo prazo mínimo de nove meses; os proprietários de terras ficavam incumbidos, da mesma forma, de reservar para os migrantes, lotes com casas provisórias, sementes e ferramentas antecipadas que, a seu turno, poderiam ser pagas anualmente pelos colonos; da mesma forma, o imigrante e sua família, dentro do período de um ano, a contar de suas imigrações, tinham o direito à passagem de volta a seu respectivo país e auxílio pecuniário, pagos pelo Estado, em caso de acidente de trabalho decorrente dos serviços por ele prestados.

Nesse contexto podemos perceber que apesar da população negra ser considerada juridicamente portadora de direitos, ou melhor, igualmente cidadã se a compararmos com a população branca; ela via-se lançada à marginalidade por não ser considerada útil à nova noção de trabalho. É importante que se diga que ser branco à época era – e continua sendo –, acima de tudo, um indicador de uma série de atributos morais e culturais, que se traduzem em uma presunção de civilidade; por outro lado, gera outra presunção de que alguém de origem africana é “primitivo” e “incivilizado”, ou seja, incapaz de contribuir com uma sociedade que se civiliza de conformidade com um padrão europeu de civilidade (SOUZA, 2017). Ou seja, no Brasil a população negra nas primeiras décadas da cidadania foi relegada a posição de humanos de segunda categoria.

Em decorrência do sistema constitucional igualitário não se podia fazer discriminações legais explícitas ou supressões aos direitos fundamentais de forma manifesta sem que se adotasse um sistema segregacionista legal, porém, as elites dirigentes encontraram uma eficiente forma de controle social: a criminalização. No Código Penal de 1890 podemos perceber várias criminalizações indiretas da população negra, como por exemplo, os delitos de curandeirismo, feitiçaria, vadiagem e capoeiragem.

A vadiagem foi o crime que mais afetou a população negra, que se via à época lançada em massa ao desemprego Araujo (2004, p. 392), renomado criminalista brasileiro, em sua obra comentários ao código criminal de 1890, apontava que o conteúdo do delito da vagabundagem era o parasitismo antissocial, ou seja, somente os pobres poderiam ser autores do crime de vadiagem, o que nos leva a considerar que boa parte da população negra estava sujeita a essa criminalização, em razão de sua condição social de extrema miserabilidade. Importante ressaltar que criminalizar naquele tempo – e ainda hoje – tem muito a ver com higienizar, retirar do espaço público um indivíduo socialmente indesejado.

Se no período colonial e imperial a luta da população negra era pela sua liberdade, nas primeiras décadas da cidadania a luta passa a ser por melhores condições de vida e oportunidade, e como organização dessas lutas vemos o surgimento das primeiras Associações Negras, a exemplo da Frente Negra Brasileira (FNB), associações estas que reivindicavam ações compensatórias, em razão dos danos causados pela escravidão. A luta dessas associações somadas a algumas medidas sociais universalistas implementadas pelo governo da época possibilitaram a uma parcela da população negra iniciar, décadas atrasada, a concorrência com os imigrantes e seus descendentes europeus, no entanto precisamos lembrar que atuação das Associações Negras foi imensamente prejudicada pela pretensa ideia de democracia racial. Essas ideias foram capazes de diminuir e amortecer os impactos do pleito compensatório, visto que sustentavam que os danos oriundos da escravidão teriam se restringido somente aos escravos, todavia, em decorrência da concessão de suas liberdades e a distinta capacidade de assimilação por parte da sociedade brasileira, seus efeitos não teriam se perpetuado.

Referências

ARAUJO, João Vieira. O código penal interpretado, — prefácio de Vicente Cernicchiaro. – Ed. fac-similar. Brasília: Senado Federal: Superior Tribunal de Justiça, 2004.

SANTOS, Lucas Vinicius da S.; FELIPE, Delton Aparecido. A Lei 10.639/2003 e os Direitos Humanos: Reafirmando a dignidade da população negra brasileira. In: FELIPE, Delton (org). Educação para as relações étnico-raciais: estratégias para o ensino de história e cultura afro-brasileira. Maringá: Mondrian Ed, 2019.

OSÓRIO, Rafael Guerreiro. Desigualdade Racial e Mobilidade Social no Brasil: Um Balanço das Teorias. As Políticas Públicas e a Desigualdade Racial no Brasil – 120 ano após abolição. Brasília: Ipea, 2008.

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