OLHAR DE MULHER NEGRA

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Mesmo sabendo que o Dia Internacional da Mulher ganhou sua importância a partir da violência cometida contra mulheres brancas em uma fábrica, esquecendo e dando zero importância, quiçá, apagando quase meio século de escravização de corpos negros, achamos salutar falar da representatividade feminina afro-brasileira em espaços de liderança e como força de trabalho propulsora da civilização brasileira.

 

A entrevista foi com  a profa. Iraneide Soares, presidenta da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN, e devo dizer que a pauta “a geografia possível da mulher negra” surgiu a partir de um episódio de racismo geográfico ao qual, eu, Tulane Souza, jornalista colaboradora da ABPN, havia passado dias antes dessa conversa com a profa Iraneide, sobre representatividade negra.

 

Na conversa, eu estava adoecida, com baixa imunidade e relatei que havia ficado doente após ter sido obrigada a descer de um carro de aplicativo, porque o motorista se recusou a me levar ao destino solicitado, cancelando a corrida. Ao relatar essa cena, a professora Iraneide prontamente descreveu a seguinte situação: “ Se você fosse uma mulher branca, ele não hesitaria em levá-la, onde quer que fosse”.

Essa fala me remeteu imediatamente a nossa vida cotidiana e como somos mal providas de redes de apoio que nos deixe permanecer em escalada profissional, como acontece com a maioria dos homens, inclusive, dos homens negros, resguardadas as devidas proporções. A vida da pessoa negra não é de fato fácil, mas a vida da mulher negra é ainda mais complexa, e se ela for negra, gorda e lésbica, é que conseguimos ver mais nítido, o quanto as mulheres negras remam sozinhas.

 

A solidão da mulher negra que é provedora ainda pode ser romantizada, somos intituladas fortes, guerreiras e etc. mas isso não reflete a realidade, muitas de nós estão aos pedaços exercendo tarefas compulsoriamente, em casa, no trabalho, na rua, e inclusive, em espaços de lazer, somos condicionadas a deixar tudo limpo, organizado, trabalhamos infinitamente e nossa recompensa tem sido a invisibilidade.

 

O Dia Internacional da Mulher não se aprouve de intensificar a luta pela proteção da mulher negra mesmo diante de séculos de violências, e em pequenos racismos cotidianos podemos diagnosticar isso, claro que não temos bola de cristal, mas, reflita: “se eu fosse uma loira de olhos azuis que entrasse no carro, você acha que o motorista se arriscaria e me levaria ao destino desejado? Foi só eu, ou você também tem a sensação que pela mulher branca, o homem branco se arrisca?”

 

Como bem pontuou a professora Iraneide, há duas questões envoltas sobre a “geografia da mulher negra”, questão 1: ser negra da pele preta, marrom ou retinta; e 2: morar em periferias”. Sim, eu sou periférica, e ao que me parece, solicitar carros de aplicativos e ser atendida ficou mais difícil depois que virei residente de um bairro estigmatizado como violento, ao qual a maioria de seus moradores são visualmente negros.

 

O racismo geográfico é estrutural, assim como os racismos linguísticos, cibernéticos, recreativos e assim sucessivamente. Diante disso, a professora Iraneide, tratando da importância da visibilidade de corpos negros de um modo geral, e ao analisar num breve mapeamento a representatividade negra no governo federal por exemplo, constata que não se sente de fato representada.

 

A presidenta da ABPN participou do GT de Ciência e Tecnologia nas equipes de transição do governo em 2022, e acompanhou a posse de ministras e ministros do governo Lula, e nesses espaços ela não conseguiu se ver de fato representada. Por que isso acontece?

 

Ao ser questionada a respeito, a professora continua citando o exemplo do Ministério da Mulher:

" Nós temos essas questões de falta de representatividade e as pessoas pensam que está muito bom porque têm mulheres, mas eu não me sinto representada.

 

[…] Num ministério que elabora política para mulheres não ter uma mulher negra, nem como secretária executiva? Então, como eu posso me sentir representada?

Não podemos diminuir a pauta feminista, mas, dentro da pauta feminista tem a especificidade do recorte racial que não está sendo tratado com a devida atenção no campo da política, e quando é tratado, é partir da fala de uma mulher branca, que não me representa.”

 

Acredito que a maioria das mulheres negras entendem essa colocação da professora Iraneide a respeito do fato de que a luta feminista, não forma redes de apoio para as mulheres negras. E mesmo assim, são as mulheres negras que apoiam direta ou indiretamente a progressão civilizacional da mulher branca. A professora ressalta isso  ao exemplificar os esforços de uma empregada doméstica, que além de manter o emprego da branca quando cuida da sua casa e dos seus filhos, muitas vezes estuda  e cotidianamente lida com os serviços domésticos de sua própria residência.

 

Essa mulher, Iraneide Soares – mulher preta, crespa e de dreads, mãe, esposa, feminista negra,  professora da graduação e da pós-graduação na UESPI, passou quase dois meses para conseguir me dar essa entrevista, o motivo – sua agenda super lotada. Ela me disse: “Eu demorei Tulane, não é por nada, é que eu precisava de ar.” Uma questão de fôlego. Estar em locais de liderança e permanecer, sim, é uma questão de fôlego, principalmente se esse lugar for mais de um lugar. Esteio de suas redes, e remando sozinha.

 

Essa coisa de estar nos lugares e não se ver representada, ou pior, de estar nos lugares e ser invisibilizada, infelizmente está na nossa história e ancestralidade. A historiadora Iraneide Soares me conta então algo que vira uma chave de perspicácia na minha mente. Ela conta que no período  colonial as mulheres brancas só tinham acesso a espaços privados, e só podiam ir aos espaços públicos acompanhadas, seja por algum familiar ou por outra mulher, a negra mucama, ao contrário disso, as mulheres negras saíam e eram obrigadas a desempenhar as mais diversas funções, – lembrando que ela não era tratada como mulher – mas, ao mesmo tempo, ela aprendeu a lidar com os espaços da rua, da casa, da roça, muito cedo.

 

Ela continua dizendo que na história do Brasil e do Movimento Negro nacional que se constitui da luta e resistência, nós mulheres negras estávamos a frente, desde a Irmandades de santo, onde fomos protagonistas, isso nos anos de 1600, a exemplo das Mulheres da Boa Morte e tantas outras irmandades criadas pelo Brasil. “No processo de alfabetização também, entendemos que houve uma superação, pois a essa mulher que não era permitido estudar, acompanhava a sinhazinha nas aulas e, ouvia e aprendia e ensinava as outras, através do letramento, temos o exemplo da Esperança Garcia no Piauí, hoje considerada a primeira advogada negra do Brasil, que escreveu uma carta em 1770, aos 19 anos, escravizada. “Então as mulheres negras escravizadas tinham esse acesso tanto à casa, quanto à rua e à roça, e elas refletiam e aprendiam com essas experiências”, afirma a professora. É dessa mulher que estamos falando!

 

A professora Iraneide relata que em sua caminhada acadêmica entre a graduação e o doutorado, apesar do apoio, sempre ouviu falas em que não havia encorajamento para o estudo. Os conselhos eram envoltos pelas palavras, casamento e filhos. Apesar disso, ela sempre continuava a estudar e pregava seus diplomas na parede da sala da casa de sua mãe, e a partir dessa ação, suas irmãs passaram a terminar o ensino médio e ingressar num curso de graduação, consequentemente seus sobrinhos estão tomando o mesmo rumo.

 

“É dessa mulher que estamos falando! De uma mulher com experiência, com vivências que me representam, e é disso que eu sinto falta no governo Lula. Sinto falta de uma sensibilidade que o governo precisa ter na hora de elaborar políticas públicas. Sinto falta  de um olhar sensível e necessário para direcionar e dar conta dessa agenda social que é o Brasil.” Conclui a professora Iraneide Soares.

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