“O lixo vai falar, e numa boa!”

Levando a questão racial aonde quer que se vá, com Lélia Gonzalez.

Escrito por Soraia Bevenuto

Revisado e publicado por Helen Silva e Maria V. Gonçalves

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Lélia Gonzalez em foto de 1988 | Imagem: Divulgação/Projeto Lélia Gonzalez Vive

 

Saudosa intelectual brasileira, mulher negra nascida no interior de Minas Gerais, Lélia Gonzalez  também foi autora, ativista, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), filósofa e antropóloga.

 

Lélia é uma referência pertinente nos estudos e debates de raça, classe e gênero no Brasil, América Latina e também pelo mundo, sendo considerada uma das principais autoras do feminismo negro no país.

Na década de 1980 fundou, com outras ativistas negras, o Nzinga — Coletivo de Mulheres Negras, com a pretenção de discutir temáticas como o racismo e a discriminação sofrida por negros e negras, independentemente de classe social ou renda, a partir de referências do continente africano quanto à cultura, às manifestações religiosas ou a política.

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O nome do coletivo foi escolhido como tributo à rainha angolana Nzinga (1582–1663) e ao esforço e empenho desta contra a escravidão e o colonialismo português, em favor de seu reino e de sua árdua e continua resistência durante mais de quatro décadas de enfrentamento. 

Em comemoração aos 89 anos de Lélia, que apesar de seu falecimento segue (r)existindo e ressoando através de sua produção intelectual, nos permitimos um breve passeio por um dos seus artigos, Racismo e sexismo na Cultura Brasileira, escrito para participar do IV Encontro Anual da Associação Brasileira de Pós-Graduação e Pesquisa nas Ciências Sociais, Lélia implode o mito da democracia racial.

Amparada epistemologicamente por Freud e por Lacan, neste artigo Lélia propõe uma reflexão em relação às pessoas negras, mais especificamente em relação às mulheres negras, explicitando a situação da mulher negra na sociedade brasileira como objeto de estudo dos intelectuais, que até naquele então não as consideravam também como um sujeito, mas como uma categoria infantil, incapaz, influenciável e sem convicção própria, e com isso proferiu em citação direta: “A partir de agora o Lixo vai falar, e numa boa!” evocando a figura da mulher negra em primeira pessoa de forma inédita nas reflexões acadêmicas, abrindo o espaço para a emancipação intelectual da mulher negra a partir da discussão dentro das ciências sociais.

A partir desse artigo, a antropóloga aciona duas personagens, a empregada doméstica como qualificadora da mulher subalternizada cotidianamente e, a mulata como a cinderela hipersexualizada, que durante o carnaval torna-se o alvo do desejo nacional, glamourizada temporariamente como duas personagens que representam o mesmo sujeito, neste caso a mulher negra na sociedade brasileira.

Ao longo dessa reflexão ela traz como conceito a neurose da cultura brasileira, sabendo o neurótico como o sujeito que tenta negar seus desejos, a partir de conceitos psicanalíticos,  esmiuçando esse desejo sexual oculto pela mulher negra e também através do Complexo de Édipo, através das relações da maternagem negra e as crianças brancas sob seus cuidados, explicitando o racismo por denegação¹ como uma sintomática da neurose cultural brasileira.

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Esse apanhado acaba por revelar os motivos pelos quais o mito da democracia racial deu certo amparado pela ideia, errônea, de que comparado à segregação racial nos Estados Unidos e/ou ao apartheid na  África do Sul, o Brasil seguia como um país pacífico e como foi possível se projetar uma resistência negra também a partir das figuras das mães pretas das crianças brancas que possibilitou a transferência de elementos da cultura negra através dos séculos até que se tornassem elementos da cultura nacional.

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Estendendo a comemoração do aniversário dessa mulher tão importante e necessária na construção do movimento negro brasileiro durante as décadas de 70 e 80, e seguindo a sugestão da própria Lélia levando a questão racial aonde quer que se vá, por que não assistir o  documentário “Em busca de Lélia” (2017) como forma de conhecer um pouco mais essa figura histórica significativa a partir de trecho de entrevistas com a mesma e diversos relatos de pessoas que estiveram em seu convívio?

 

Este projeto foi realizado com recursos do edital Curtas Universitário, e foi desenvolvido pelo Canal Futura em parceria com a ABTU e a TV Globo. O vídeo possui duração de 15 minutos e está disponível na íntegra no Youtube.

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