Esta tese é um dos frutos de uma etnografia realizada em 2015 com crianças de uma turma de educação infantil (04-05 anos) na escola municipal Malê Debalê, em Itapuã, Salvador (BA), escola sediada dentro do bloco afro de mesmo nome. Devido às possibilidades e também limitações que uma etnografia oferece, a pesquisa alternou momentos em que pude falar sobre e com as crianças, através do estudo das relações de catorze crianças entre si, com crianças maiores e também com os/as adultos/as. A partir da sociologia da infância, mas também com os estudos sociais da infância, os estudos sobre relações raciais e antirracismo, a interseccionalidade e os estudos decoloniais, busquei aproximar-me do ponto de vista das crianças para abordar os temas que por elas me foram apresentados, a saber: a relação adultocriança e o corpo. Apresento também temas que julguei importantes serem assinalados a partir da minha perspectiva adulta, como sexo-gênero e raça. De modo secundário, as ações das/os adultos/as presentes no campo também foram observadas. O termo mandinga, identificado como um dos elementos da capoeira, possui uma relação com o contexto e com o grupo social estudado, além de traduzir os aspectos observados no campo, a partir da forma como as crianças lidavam com as pessoas e os objetos à sua volta. Denominei de mandinga a ação social que essas crianças negras realizaram para negociar suas existências em um mundo adulto que, apesar de reconhecer suas presenças, insiste em não reconhecer a importância das suas culturas e dos saberes que elas possuem para viver no mundo enquanto seres que, tal como os/as adultos/os, estão sendo e tornando-se. A pesquisa demonstrou que, muito embora estejam em um espaço em que as culturas negras são vivenciadas pelas crianças, tanto os meninos quanto as meninas negras ainda são submetidos/as a normas de raça e sexo-gênero, acrescidas pelas imposições da idade, demonstrando o caráter fundamental do debate interseccional para alcançarmos as crianças negras. A partir das relações de interdependência entre as estruturas sociais e as agências das crianças, vislumbra-se um corpo de criança que é individual e coletivo, porque expressa-se por, com e a partir das demais pessoas presentes em suas vidas. Esse corpo é bio-socio-cultural em toda a sua existência e foi, paulatinamente, sendo percebido pelas crianças como possuidor de um sexo-gênero e de uma raça a partir das relações que travaram entre elas, com outras crianças maiores e também com os/as adultos/as. Nas interações, uma cobrança com relação às meninas negras para que demonstrassem maior controle sobre suas emoções foi percebida, já para os meninos negros havia o reforço da masculinidade, que se fazia presente quando eles eram vistos como maus e perigosos. Apesar disso, houve crianças que fizeram frente a esses modelos femininos e masculinos impostos também às crianças negras, havendo uma solidariedade intergêneros, possível de ser notada entre elas durante o trabalho de campo, evidenciando-se com alguma intensidade nos momentos em que brincaram juntas de casinha, com os meninos negros desempenhando funções consideradas femininas. Estas análises fizeram-me perceber que, para além do brincar, a amizade foi um dos princípios das crianças partícipes da pesquisa. A amizade, em consonância com o ponto de vista das mulheres negras presentes no campo, demonstrou as possibilidades de aproximação entre as perspectivas das crianças e as dos/as adultos/as negros/as. No que tange aos corpos das crianças, estes movem-se através de gingas de corpo e gingas de palavra, organizadas individual e coletivamente para burlar os espaços-tempos definidos pela escola e as ordens institucionais adultas ocidentais. Entre mandingas e gingas, as crianças brincam não apenas com brinquedos, pessoas e coisas, mas também com a própria vida, recuando e atacando, tal qual num jogo de capoeira e, ao mesmo tempo, se acomodam, resistem e transformam. Nestes movimentos, recuperam suas existências no instante-agora em que estão crianças.
Nunes, Mighian Danae Ferreira. MANDINGAS DA INFÂNCIA: as culturas das crianças pequenas na escola municipal Malê Debalê, em Salvador (BA). Tese – USP. São Paulo, 2017
Possui graduação em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia/UNEB (2003), especialização em História, Sociedade e Cultura pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) – São Paulo (2008), Mestrado pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo/FEUSP (2012) na linha de História da Educação e Historiografia e Doutorado em Educação na área da Sociologia da Educação na FEUSP (2017). Foi professora de educação infantil por quinze anos na educação pública. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Infantil, atuando principalmente nos seguintes temas: educação das relações étnico-raciais, raça, gênero, estudos sociais da infância e pesquisa com crianças. Faz parte do Grupo de Pesquisa em Educação Afrocentrada – GRUPEAFRO, da UNILAB, do Núcleo de Estudos Africanos, Afro-Brasileiros e Indígenas da UNILAB e é membro da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) e da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPed). Atualmente é professora da Universidade Internacional da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira, IHLM – Campus dos Malês (UNILAB, São Francisco do Conde, BA) e coordenadora da Ibeji: Rede de Pesquisadoras Negras em Infâncias. É membro da Comissão Nacional para a Educação das Relações Étnico-Raciais e Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira (CADARA – MEC).
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