110 anos de uma das maiores escritoras brasileiras que continua a ensinar diariamente a não desistir de lutar por um mundo mais justo para as escritoras negras.
Escrito por Hellen Silva
Revisado e publicado por Helen Silva e Maria V. Gonçalves
Um mergulho onírico na mente da catadora de papel que transformou a sua realidade através da literatura:
Sonhei
Sonhei que estava morta
Vi um corpo no caixão
Em vez de flores eram livros
Que estavam nas minhas mãos
Sonhei que estava estendida
No cimo de uma mesa
Vi o meu corpo sem vida
Entre quatro velas acesas
Ao lado o padre rezava
Comoveu-me a sua oração
Ao bom Deus ele implorava
Para dar-me a salvação
Suplicava ao Pai Eterno
Para amenizar o meu sofrimento
Não me enviar para o inferno
Que deve ser um tormento
Ele deu-me a extrema-unção
Quanta ternura notei
Quando foi fechar o caixão
Eu sorri… e despertei.
(In: Antologia pessoal, p. 174)
Em seus sonhos, Carolina Maria de Jesus via livros florescerem. Como se pudesse ter ouvido Racionais MC’s cantar os versos de Vida Loka – parte 1: “onde estiver, seja lá como for/ tenha fé, porque até no lixão nasce flor”, a mineira insistia em ser escritora. Ou como se Racionais tivesse se inspirado na escritora para escrever tais versos, eles hoje ecoam inspirando gerações. Na verdade, talvez seja porque Carolinas estão hoje espalhadas pelo país. Por isso não é de se espantar que os versos possam lembrar a desigualdade vivida pela população negra na sociedade brasileira.
Contudo, as metáforas poéticas presentes nos versos de “Sonhei” de Carolina e de Racionais MC’s em Vida Loka – parte 1, traduzem a força transformadora que a comunidade negra possui para enfrentar as adversidades provocadas pelo racismo e realizar sonhos ancestrais.
Do “Quarto de Despejo” à imortalidade literária
Nascida em 1914, em Sacramento, Minas Gerais, Carolina migrou para São Paulo em busca de uma vida melhor. Na capital paulista, instalou-se na favela do Canindé, onde viveu em condições precárias, catando papel para sobreviver. Em meio às dificuldades, encontrou na escrita um refúgio, um espaço para expressar seus sentimentos, reflexões e críticas sociais.
Em 1960, o jornalista Audálio Dantas encontrou Carolina e os seus cadernos que vieram a ser publicados no livro “Quarto de Despejo”, um sucesso instantâneo que vendeu mais de 10 milhões de cópias e foi traduzido para diversos idiomas. O livro impulsionou Carolina para a fama, mas também a expôs à crítica de alguns setores da sociedade que se sentiam incomodados com a crueza de suas palavras.
A escritora que semeou sonhos e inspirou gerações
Apesar das críticas, Carolina nunca se intimidou. Continuou escrevendo e publicando outros livros, como a mesma disse: “Falavam que eu tenho sorte, eu disse-lhes que eu tenho audácia.”. A audácia de se afirmar levou Carolina a publicar outras obras, como Casa de Alvenaria (1961), “Pedaços da Fome” (1963), “Provérbios” (1963), além de se envolver em outras atividades artísticas, como a música:
Todas as composições são suas, acompanhadas do Maestro Francisco Moraes nos arranjos e a direção artística de Júlio Nagib.
Carolina Maria de Jesus faleceu em 1977, aos 62 anos. Deixou um legado literário e social inestimável, inspirando gerações de escritoras e ativistas. Seus sonhos floridos de livros continuam a brotar, semeando esperança e transformando vidas através da força da palavra. Sua obra, marcada pela simplicidade e autenticidade, tornou-se um marco na literatura brasileira, abrindo caminho para que outras vozes marginalizadas não sejam silenciadas, na vida ou na morte.